Um sujeito consagrado, uma máquina de conquistar títulos e alcançar recordes. Chamado de “mito” pela torcida, Rogério Ceni completará, nesta quarta-feira, 21 anos de um dos mais bem sucedidos casamentos da história do futebol brasileiro. E quis o destino que, para que a data ficasse ainda mais especial, ele chegasse à incrível marca de 1.000 jogos pelo São Paulo, algo impensável naquele 7 de setembro de 1990, quando, com 17 anos e vindo de Sinop (MT), apareceu no CT da Barra Funda para realizar um teste no Tricolor.
Para se ter uma ideia do que representa o feito, somente dois jogadores na história do futebol brasileiro atingiram tal marca: Pelé (1.114 partidas pelo Santos) e Roberto Dinamite (1.065 pelo Vasco). Mas o que realmente impressiona nesse paranaense de Pato Branco (PR) não são apenas as conquistas. E sim a maneira como ainda encara a carreira. Profissional ao extremo, é sempre o primeiro a chegar no campo e o último a sair do CT. Capitão há 757 jogos, ainda encontra palavras para mexer com o grupo na hora da preleção, como fez na partida de sábado, contra o Figueirense. E mesmo prestes a completar o seu milésimo jogo, é capaz de dizer:
- Para mim, não tem festa na quarta-feira. Vou entrar em campo para trabalhar. Afinal, é um jogo que pode nos dar a liderança do Campeonato Brasileiro.
Esse é Rogério Ceni, que, em entrevista exclusiva ao GLOBOESPORTE.COM, faz um balanço de sua carreira, lembra das vitórias, das frustrações e confessa um sonho totalmente utópico:
- Eu gostaria que o São Paulo fosse meu.
É o amor pelo clube que o faz pensar se vale a pena encerrar a carreira no fim do ano que vem, quando termina seu contrato. Ceni diz que, em um ano, vai decidir se abandonará mesmo os gramados em dezembro de 2012. Se isso acontecer, ele já tem o script perfeito: com mais um título da Taça Libertadores da América.
GLOBOESPORTE.COM – Após 21 anos e 999 partidas, como você consegue manter tamanha motivação para seguir se destacando nos gramados?
Rogério Ceni - A motivação vem de fazer o que eu gosto onde gosto. Escolhi ser atleta porque é o que adoro fazer. Sou apaixonado por jogar futebol no São Paulo. Tenho que ser feliz. Mesmo passando por dificuldades, sou um cara realizado. Até hoje, tenho intacto dentro de mim o desejo de treinar e de jogar. Sinto aquela angústia de saber se vamos vencer para assumir a liderança do Campeonato Brasileiro.
Você é capitão do São Paulo há 757 partidas. Mesmo assim, ainda é capaz de mexer com os companheiros. Muitos disseram que a preleção antes da partida contra o Figueirense foi fundamental para a vitória.
Precisava ganhar o último jogo. Precisamos ganhar todos, mas após o jogo contra o Fluminense, precisávamos dar um motivo para o torcedor ir ao estádio na quarta-feira. Nosso time estava desfalcado, não tinha nem banco completo. Tive que achar palavras diferentes, até porque haviam meninos da base. Me emocionei na hora de falar, tentei achar algo que era importante, que tocasse os caras que estivessem lá e foi o que aconteceu. Acho um absurdo o jogador entrar em campo e não dar o seu máximo. Correr, batalhar, dividir, cabecear deveria ser praxe em todos os jogos para todos os jogadores.
O que representa o milésimo jogo?
Em números é redondo, bonito. Quatro dígitos é difícil, rapaz. Representa a minha vida. Tenho 38 anos, 21 vividos aqui, ou seja, quase 60% da minha vida foi no São Paulo. Foi uma carreira, uma escolha de vida. Perdi muito da minha vida por escolher ser jogador, mas ganhei muito. O reconhecimento do meu trabalho, o carinho do torcedor, o respeito daquele que gosta de futebol. Foi uma troca de situações. Aprendi a ser uma pessoa melhor, aprendi a entender melhor as pessoas. Antes queria que tudo fosse feito do meu jeito, discutia com repórter. Hoje, entendo que cada um é de um jeito e você tem de tirar o melhor daquela pessoa, mas do jeito que ela é. Melhorei como gente, como ser humano e isso só veio com a experiência. Tive muitas lições e um aprendizado muito grande.
Mas sem dúvida é algo especial, tanto que o São Paulo está preparando uma festa, antecipou o jogo, fez promoção de ingressos. Tudo para marcar a data.
Jogo festivo é para quem vai ao estádio. É legal, vi que terá faixa, bandeira. A minha felicidade vem da presença do torcedor. Para mim, é um jogo, vou trabalhar e não fazer festa. Eu preciso ganhar. Se isso acontecer, aí vou estar relaxado e curtir aqueles momentos pós-jogo. Há tempos que não levamos 50 mil pessoas ao Morumbi. Espero que isso possa acontecer na quarta, não pela minha marca, mas pela importância da partida. A química que isso provoca não tem preço. Você pode usar mil palavras que nunca vai conseguir motivar igual a ver o Morumbi lotado.
A preleção do jogo de quarta será diferente?
Nunca preparo. Sinto o momento, as palavras surgem a cada programa que assisto, documentário que vejo, livro que leio. Procuro pegar coisas de grandes ídolos, caras como Jordan, Senna, frases ou momentos de superação de tanta gente boa. Daí que você vai encontrando coisas boas para falar em determinadas situações. No dia a dia, tento mostrar isso aos mais jovens para eles entenderem o que é o São Paulo.
Tem alguma lição que você guarda até hoje?
Quando cheguei ao São Paulo, morava no alojamento que ficava no portão 4. E o lanche da noite era no portão 1. Para quem não tem ideia, tinha de atravessar meio estádio no escuro total. Na época, até brincavam dizendo que alguns operários haviam morrido e que os espíritos moravam lá. Quando chegava no lanche, tinha café com leite, que eu não tomava, e pão murcho com margarina. Não fui só eu que vivi, era a situação na época. Ou comia aquilo ou ficava com fome. Aí vim para o CT e, após o primeiro teste, disseram que eu podia jantar. Tinha filé mignon, era bom demais. Estava acostumado a treinar em campo de terra e via no CT o Telê catando as pragas do gramado. Quando concentrei pela primeira vez, meu quarto tinha ar condicionado. Falei: daqui não saio mais, não vou voltar para trás. Por ter passado essas dificuldades no início talvez eu dê tanto valor a isso até hoje. No mundo atual, é tudo diferente, tem o CT de Cotia. Os mais jovens não vão entender essas dificuldades. Acho bom até porque o mundo mudou. Mas também seria bom que eles dessem valor ao que eu e muitos demos na época.
Nesses 999 jogos, você consegue eleger o mais especial? Ou os mais especiais?
Existem aqueles jogos que não levaram a nada, no meio de campeonatos. E existem aqueles que ficam guardados para sempre. A final do Mundial de 2005 é especial para o torcedor por ver seu time campeão mundial após tanto tempo. Me lembro do jogo contra o Cruzeiro em 2006, quando defendi um pênalti e fiz dois gols - arrancamos dali para o título. Em 2008, teve o jogo do tricampeonato brasileiro contra o Goiás, na cidade do Gama. Naquele campeonato, tiramos 11 pontos de desvantagem para o Grêmio. A final da Copa Conmebol contra o Peñarol em 1994 foi minha primeira conquista. Teve o gol na final do Paulista contra o Santos (em 2000). Você vai pensando e buscando coisas importantes.
E as maiores frustrações?
São mais fáceis de citar porque foram poucas. A primeira foi a perda da Libertadores de 1994, quando estava no banco. Fomos prejudicados no tempo normal por causa de um pênalti não marcado e demos azar do Palhinha, que foi tão importante nos anos anteriores, desperdiçar sua cobrança. Teve a final da Copa do Brasil de 2000, quando perdemos um título ganho aos 45 minutos do segundo tempo. E a derrota na final da Libertadores de 2006. Perdemos no Morumbi porque o Josué foi expulso injustamente e o Mineiro se machucou. No Beira-Rio, não tivemos força para buscar o empate. Politicamente, o Inter também foi mais competente que nós. Lembro que não pudemos usar o Ricardo Oliveira (o atacante pertencia ao Betis-ESP, que havia comprado Jorge Wagner do Inter. O meia se apresentaria após a Libertadores. O Colorado só aceitou negociar se os espanhóis não renovassem o empréstimo do Ricardo Oliveira, que não pode participar da decisão)
O que você pensa para o futuro?
O futuro é o meu próximo jogo, minha próxima chance de vitória. Digo que cheguei no meu máximo, que é jogar no São Paulo e ser campeão. É o máximo que sinto de prazer de jogar futebol. Por isso, digo que cada jogo é um desafio. Pode parecer que não, mas quando perco um jogo fico com vergonha, não saio na rua. Fico constrangido, chateado.
Por isso que você pulou a placa de publicidade e evitou a imprensa após a derrota para o Fluminense, na última semana?
Aprendi uma coisa no futebol. Quando você está de cabeça quente, é melhor ficar quieto. Se falar besteira, não tem volta. É um direito meu não falar. Mas não foi por falta de respeito, foi para não falar algo que certamente me arrependeria e que, com toda justiça, seria bem explorado por vocês. Estava muito p..., jogamos mal, fomos horríveis contra o Fluminense. Tivemos 20 minutos nos quais faltou vergonha. Depois corremos atrás e não conseguimos recuperar. E foram justamente esses pontos que hoje poderiam nos colocar na ponta.
Você pensa no seu futuro após dezembro de 2012? Acha que dá para continuar?
Tenho contrato e vou procurar jogar em alto nível até lá. Daqui um ano, entre setembro e outubro do ano que vem, vou fazer uma avaliação para saber se posso continuar ou não. Certamente, os títulos serão fundamentais para a continuidade. Temos de ganhar algo, tenho de me sustentar em conquistar, em vencer novos campeonatos para que sirva de uma automotivação e continue fazendo o que fiz de profissão.
Pelé (1.114 jogos pelo Santos) e Roberto Dinamite (1.065 pelo Vasco) estão à sua frente. É possível alcançá-los?
Se jogar até o fim do ano que vem sem lesões, dará para chegar naturalmente no Roberto. Jogo, em média, 65 a 70 partidas por ano. No Pelé é impossível. Mas não é isso que me fará jogar mais ou não. Vou continuar enquanto tiver o desejo dentro de mim. Quando começar a perceber que o caminho do CT é muito longe, é porque é hora de parar.
Você se vê em outra função que não seja a de presidente do São Paulo?
Gostaria de um dia, o que não vai acontecer, que o São Paulo fosse meu. Aí faria tudo de acordo com as minhas convicções. Como o time não tem dono, teria de exercer outra função, com ideias de outras pessoas. E serei questionado mesmo não implantando as minhas ideias. Por isso, tenho dúvida se teria outro cargo no São Paulo que não fosse o de comando máximo, de decisão. Não ficaria triste se não continuasse depois, porque vou sair com a sensação do dever cumprido. Se chegar esse momento, terei a função mais nobre de um são-paulino, que é torcer.
Muita gente brinca perguntando se existe futuro no São Paulo sem o Rogério Ceni.
O São Paulo vai continuar grande. Isso já aconteceu no passado com grandes craques. Quando o Raí parou, todo mundo tinha essa dúvida e acho que pude contribuir um pouco. Assim como antes do Raí teve o Careca, que teve o Pedro Rocha antes, que teve o Dias, que teve o Poy. Não me acho melhor do que ninguém. Só acho que sempre fiz e faço o melhor para o São Paulo.
O título da Libertadores de 2012 seria um grande final para você?
É que o tenho na cabeça. É a minha realidade, é o que mentalizo todos os dias. Primeiro temos de garantir a vaga. Depois, a diretoria precisará montar um time ainda mais forte. Para mim, a conquista de mais uma Libertadores seria como fechar com chave de ouro. Todo mundo quer parar por cima. Todo mundo quer fazer como fez o Fernando Meligeni (tenista), que teve aquela vitória sobre o Marcelo Ríos (Chile) no Pan-Americano.
Se o futuro for longe da bola, você já tem alguma ideia?
Quem sabe eu possa morar fora do país por um tempo, conhecer novos países, novas culturas. Depois que parar com o futebol, quero jogar tênis, gosto muito. É claro que, de vez em quando, vou disputar uma pelada, mas na linha. Garanto que após meu último jogo como profissional do São Paulo, nunca mais vou vestir uma luva na vida.